CONTAS DE GOVERNO E GESTÃO: UMA DISTINÇÃO NECESSÁRIA

Primeira Foto

 

O Ministério Púbico de Contas, por intermédio da Procuradora Luciana Campos, nos processos n.ºs 15179/2014-TCE, 12007/2014-TCE, 13906/2014-TCE, 11974/2014-TCE, 12010/2014-TCE, 11994/2014-TCE, 11981/2014-TCE, 13815/2014-TCE, 15162/2014-TCE, 11929/2014-TCE, 701510/2013-TCE, e 4164/2011-TCE, pede a instrução processual, que fora limitada pela confusão conceitual entre contas de governo e contas de gestão.

Não há de se confundir contas de governo e de gestão, tampouco suas respectivas metodologias de trabalho. O trâmite processual e as decisões proferidas em face da análise de contas de gestão e de governo decorrem, logicamente, da aplicação teórica do princípio da redundância. O fato é uno e deflagra os diversificados controles, com a incidência, em cada sistema, das penas nele previstas legalmente. O sistema de controle brasileiro é assim forjado constitucionalmente pela redundância tanto de ritos e procedimentos como de sanções.O fato

Conforme consta na manifestação ministerial relativa aos processos supracitados:

“Nas contas de gestão, as quais são julgadas pelo TCE por força do art. 71, II da Constituição Federal e do art. 1º, II, da Lei Complementar 464/2012, são avaliadas as atividades do gestor público e o compasso delas com as leis, inclusive com a LRF, logicamente, tanto sendo analisados os aspectos econômicos, contábeis e financeiros das despesas [é a gestão financeira que, se feita perigosamente (“gefahl”) ou com riscos (“Risiko”) financeiros, deve ser expurgada e controlada pelo TCE, fato que encontra expressão sancionatória, por exemplo, no art. 107, I e II, “c”, da Lei 464/2012], como também se empreende a avaliação do cumprimento dos ritos e das formalidades expressas em leis (cujo descumprimento, conforme prenuncia a Lei Orgânica do TCE, demanda a aplicação de sanções prescritas no art. 107, II, “b” e “f” da Lei 464/2012).

Em síntese, nas contas de gestão há a possibilidade de sancionamento por parte do Tribunal de Contas. São analisados, de forma técnica, os atos praticados pelos ordenadores de despesa na gerência dos recursos públicos, com base nos documentos e informações de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional.

Nas contas de governo, que não são julgadas pelo TCE e que, no âmbito da jurisdição de contas, não se aplicam sanções específicas (porque essas são impostas pelo Poder Legislativo mediante sua reprovação), dado que apenas se expede um Parecer Prévio, avalia-se a gestão política dos chefes do Poder Executivo, estando inserta nessas contas a avaliação do desempenho da administração direta e indireta.

As contas dos administradores das entidades da administração indireta, ressalte-se, são consolidadas às contas do chefe do Executivo do respectivo ente da federação, gestor último e responsável pelos serviços descentralizados, uma vez que a descentralização reflete uma singela estratégia de gestão administrativa de melhor prestar os serviços públicos especializados, sendo que, por isso, apenas os chefes do Executivo são julgados politicamente por seus atos (situação em que todos as contas daqueles administradores da administração indireta são contas de gestão, independentemente do nomen juris dado ao processo de apuração).

De forma semelhante ocorre com as contas dos Presidentes das Câmaras Municipais, como é o caso do presente processo. Salienta-se que o gestor legislativo não é julgado politicamente por contas anuais.

O julgamento das contas anuais, revestidas do mencionado viés político, aplica-se aos chefes do Poder Executivo, como gestor último e responsável pelas decisões dessa natureza no âmbito municipal, inclusive quanto ao repasse dos duodécimos para o Poder Legislativo. Por esse motivo é que as contas dos Presidentes das Câmaras são consolidadas às contas do Prefeito, inclusive por determinação do art. 56 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Nas contas anuais, portanto, os mesmos fatos analisados nas demais contas são utilizados para a formação de juízo político, levado a efeito pela Casa Legislativa correspondente, sobre o gerenciamento do ente pelo Chefe do Poder Executivo, após emissão de Parecer prévio pelo Tribunal de Contas.

Em síntese, o sistema de controle das contas de governo é realizado pelo Poder Legislativo. O fato de estas contas tramitarem, em determinado momento, no âmbito do TCE (rito constitucionalmente fixado) – para que este funcione como instância opinativa (ou seja o TCE funciona nas contas de governo como parecerista) –não desloca ou mesmo modifica a autoridade competente para julgar e aplicar as sanções políticas (nesse sistema as sanções são políticas).

Frise-se: a técnica de avaliação das contas de governo e de gestão (obviamente a técnica científica de avaliação do fato) não muda e nem poderia/deveria mudar, tal como não se muda a lei de Newton ou mesmo a álgebra euclidiana. A análise cientificamente pautada nas finanças, na contabilidade ou na economia do fatispecie, não elimina a irregularidade nele encontrada ou as dissonâncias detectadas relativamente aos parâmetros de normalidade pela simples circunstância de a instância de julgamento – Poder Legislativo ou TCE – ter sido modificada. As técnicas de avaliação das irregularidades podem, obviamente, ser as mesmas (no âmbito de julgamentos políticos de contas públicas ou nos julgamentos técnicos das contas de gestão); as consequências jurídicas aplicadas, elas sim!, são essencialmente diversas, como inteiramente diversos são os órgãos julgadores.

As técnicas

Infere-se, dessa forma, que mesmo com a utilização da mesma base de dados (documentos e informações de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional) são geradas sanções de naturezas diversas, pelo princípio da redundância, segundo o qual não há vinculação de determinados dados para determinados processos.

Cumpre repisar que a redundância garante que a conduta dos gestores públicos seja apreciada por uma “multiplicidade de sistemas de responsabilidade”, com suas respectivas vocações, de modo a concretizar os valores democráticos no controle da atuação dos agentes políticos (BEZERRA, 2016).

Diante desses argumentos, equivoca-se a Diretoria de Assuntos Municipais na interpretação do art. 20 da Resolução 012/2012[1], quando sugere que este impõe a utilização de determinados dados apenas para processos de contas anuais.

Analise-se, então, a redação da mencionada norma:

Art. 20. Os resultados das análises realizadas durante o exercício, notadamente no que se refere às impropriedades detectadas e aos Termos de Alerta de Responsabilidade Fiscal emitidos, deverão ser considerados no momento da apreciação das contas anuais de governo pelo Corpo Técnico.

Da análise do dispositivo, verifica-se que este, de fato, demanda que as impropriedades averiguadas no exercício de um ente também sejam levadas em consideração no momento da emissão de parecer prévio nas contas de governo.

Em nenhum momento, todavia, o dispositivo veda/exclui que a mesma análise seja feita nas contas de gestão. Do contrário, a interpretação gramatical da norma aponta, inclusive, que se trata de recomendação aplicada a apreciações já encerradas (conclusas), fato autoevidenciado pelo tempo verbal utilizado na oração (particípio) conjugado com o vocábulo “resultado” (somente existe uma conclusão/resultância depois de encerrada a operação de análise). Essa constatação também fica clara pelo trecho “resultados das análises realizadas durante o exercício”, os quais deverão ser “considerados no momento da apreciação das contas anuais” (grifos acrescidos).

Não há determinação, portanto, dada a impossibilidade lógica, no sentido de que essas análises sejam realizadas nas contas anuais, mas apenas de que as análises já concluídas sejam consideradas naquela situação.

É justamente esse o sentido do princípio da redundância evidenciado no corpo deste Parecer. Por óbvio, a totalidade das informações que dizem respeito aos entes fiscalizados deve ser utilizada para todos os fins a que se destinam, seja em processos de controle financeiro pelo Tribunal de Contas, seja em processo de controle político feito pela Casa Legislativa respectiva após Parecer Prévio, ou em quaisquer outros sistemas.

O equívoco de se delimitar o âmbito em que determinados dados serão avaliados e excluir a possibilidade de que outros controles sejam exercidos sobre o fato vai à total contramão ao sistema de controle externo pensado para o Tribunal de Contas. Repise-se que apenas a fiscalização técnica levada a efeito por este órgão é capaz de aplicar sanções de ordem financeira aos gestores (multas, ressarcimento ao erário), o que não ocorre na apreciação política das contas. Afastar a possibilidade deste Tribunal de avaliar contas de gestão de entes públicos apenas favorece o gestor faltoso, que deixará de ser corretamente sancionado pelos seus atos, prejudicando sobremaneira a sociedade e o interesse público. (…)”.

 

POR: PROCURADORA LUCIANA CAMPOS

 

Referência Bibliográfica.

BEZERRA, Fábio Luiz de Oliveira. Responsabilidade do Governante, Impeachment e Modelo Brasileiro de Improbidade Administrativa: Contributo para uma Teoria de Articulação entre Responsabilidade Política e Responsabilidade Jurídica. Coimbra, 2016.

CAMPOS, Luciana Ribeiro. Direito Orçamentário em busca da sustentabilidade: do planejamento à execução orçamentária. Porto Alegre: Núria Fabris Editora, 2015.

[1] Art. 20. Os resultados das análises realizadas durante o exercício, notadamente no que se refere às impropriedades detectadas e aos Termos de Alerta de Responsabilidade Fiscal emitidos, deverão ser considerados no momento da apreciação das contas anuais de governo pelo Corpo Técnico.

Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, a partir da análise das contas anuais do exercício de 2011, o relatório emitido pelo Corpo Técnico de cada órgão de controle externo deste Tribunal de Contas deverá incluir uma seção específica ao resultado da análise da gestão fiscal dos Poderes e órgãos interessados.

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